sexta-feira, julho 29, 2005

SREBRENICA OU A NATUREZA HUMANA

DEDICADO AO CALHORDUS

Foi, penso eu, na sequência de um debate que neste blog se gerou a propósito do décimo aniversário sobre o Massacre de Srebrenica, que surgiu a iniciativa de me convidarem para escrever no PORCOLATINO.
Tendo assistido estupefacta e impotente à incompatibilização entre duas pessoas que, que eu saiba, nem sequer convivem pessoalmente, fiquei a compreender melhor como é possível que desgraças como as que atingiram a antiga Jugoslávia aconteçam. Fiquei a perceber melhor como é fácil quebrar o diálogo, criar antagonismos, e derrubar pontes.
O que me atraiu desde o início neste blog foi a possibilidade de, através das palavras, estabelecer pontes com pessoas com percursos, origens, idades, conhecimentos, crenças, posições políticas e experiências de vida diversas, sendo certo que nenhum de nós, que aqui escreveu ou comentou teria uma noção clara das posições dos outros.
Sendo obrigada a reconhecer que este blog perdeu o espírito que, pelo menos aparentemente o animava, gostaria que lessem o excerto de um texto sugestivamente chamado:

TROCA DE PALAVRAS AMIGÁVEIS (excerto)
A minha mãe sentou-se ao meu lado e pôs o braço à minha volta (...).
(...) Falou-me da ocasião em que o seu pai deu o único cavalo que tinham.
-- Foi em quarenta e três ou quarenta e quatro, apareceu um rapaz novo a correr no milheiral. Aminha mãe e o meu pai conheciam-no, era esgalgado e tinha olhos azuis, um muçulmano de uma aldeia vizinha. Disse que os Chetnicks tinham matado a família toda, que tinha escapado porque saltou de uma janela e agora estavam atrás dele. Tinha uma nódoa negra na face, como se alguém o tivesse beijado com lábios cor de ameixa. Pediu ao meu pai o cavalo para poder fugir e juntar-se aos partisans. O meu pai olhou para a minha mãe, que não disse nada, mas ele sabia e foi buscar o cavalo, sempre a praguejar:«Raios partam este mundo mais o maldito do Sol e este país onde toda a gente precisa do meu cavalo». O rapaz, chamava-se Zaim, beijou o meu pai em ambas as faces e prometeu devolver o cavalo assim que as coisas acalmassem. E lá partiu nio cavalo, a acenar-nos. mas depois os Chetnicks apareceram, montados nos seus cavalos, como cowboys. «Onde é que ele está?» gritaram. «Onde está o cão circuncidado?». E diz o meu pai: «Qual é o problema, iRmãos?». Todos têm barbas e espingardas e facas e gritam: «viste o sacana do turco?». Omeu pai diz: « Não sei de quem estão a falar». «Estás a mentir!» gritam eles. «És um traidor!». A seguir, espancam-no com as coronhas das espingardas, atiram-no ao chão e dão-lhe pontapés com as botas. «Que se passa contigo, cabrão? Tu és dos nossos! Onde está o turco? Ele é-te alguma coisa?» eu julguei que eles nos iam cortar as gargantas, assim, sem mais. O meu irmão estava com os partisans, mas nós fizemos saber que el estava em Srem, a trabalhar.
-- Nunca me contaste isso-- disse eu.
Ela prosseguiu: -- Continuaram a bater-lhe até ele ficar a sangrar e inconsciente. A minha mãe chorou e implorou-lhes que o poupassem. Então um deles, sem barba, veio ao pé de mim e disso: « Aqui está uma rapariguinha sérvia que nos vai dizer onde está o turco». Aí, eu fiquei sem falae então vo os olhos da minha mãe, assustados, e com as mãos dela a apertarem-se uma à outra com força. disse-lhes que não tinha visto ninguém e que, se tivesse visto, lhes dizia. eles foram-se embora e o que não tinha barba disse-nos que seria ele a julgar-nos pessoalmente, se descobrisse que estávamos a mentir. Era o nosso único cavalo, sabes, tudo quanto tinhamos.
de Aleksandar Hemon, A QUESTÃO DE BRUO, ed. Asa, p 103-104.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

está lindo, leiam com os olhos e pensamento bem aberto......

7:06 da tarde  

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