Eu é que sou... (crónica)
Ia adiantado em dias o mês de Dezembro desse ano de 1982. O frio, habitual na época, ainda não se tinha feito sentir, mais um sinal demolidor a descaracterizar o Natal que dois mil anos de cristianismo se tinham esforçado por erguer sobre as festas pagãs do solstício de inverno.
Fiéis à tradição e ao apelo ao consumo, que os mais sofisticados meios de propaganda se esforçam por desenvolver, o casal levava já os subsídios de Natal a caminho da exaustão e ainda faltava contemplar com inutilidades e lembranças alguns parentes e amigos devotados.
Regressavam duma pequena incursão por lojas pejadas de pessoas afadigadas em nada deixarem para outras comprarem. Traziam numerosos sacos, dois filhos, outros tantos guarda-chuvas e a preocupação de terem de voltar a percorrer os mesmos sítios, a observar as mesmas inutilidades, a hesitar de novo, para voltarem sempre à livraria habitual em busca dos livros que receavam terem sido já comprados por amigos que elegeram para destinatários.
A mesa da cozinha desaparecera literalmente sob embrulhos coloridos, um molho de chaves, dois sacos de roupa vindos da creche, uma carteira de melhor qualidade que aspecto, guloseimas diversas e vitualhas.
O miúdo dava corda ao carrinho e usava as cordas vocais para conferir mais rotações ao motor imaginado. Ouviam-se os dois, carro e miúdo, no corredor, numa corrida desenfreada e interminável, sem concorrentes nem meta.
A miúda tinha ficado a dar fé do inventário e a seguir todos os gestos, interessada, a percorrer com o olhar todos os objectos, a ouvir com atenção os desabafos e as conversas dos progenitores.
Por entre a chuva miudinha que continuava a fustigar os vidros da janela adivinhava-se a noite cuja escuridão crescia por entre as luzes da cidade. E o jantar ainda por começar e um último balanço por fazer!
Nisto, a miúda interrompeu a conversa dos pais para dizer:
- Mãe, dá-me um chocolate.
- Agora, não.
- Filha da puta, disse resignada a criança perante a estupefacção e o riso reprimido dos pais. Estes, fingindo não ter ouvido, olhavam cúmplices um para o outro e procuravam o pretexto para retomarem a conversa interrompida e cujo fio de todo se perdera por causa da inopinada expressão tão bem pronunciada num desabafo convicto e convincente. Olharam de soslaio a criança que continuava atenta aos gestos dos pais.
A mãe tinha já arrumado o grosso das encomendas, começara a pôr o jantar ao lume e ameaçara com o banho, para daí a pouco, as crianças. A ordem regressara ao apartamento e a paz aguardava que a chama do gás, os temperos e o tempo propiciassem a refeição.
O pai já mergulhara na leitura do jornal. Enquanto a mãe se desdobrava nas numerosas tarefas domésticas e o irmão continuava a acelerar o motor do carrinho de corda, a menina veio de mansinho por detrás da mãe, puxou-lhe suavemente a saia e disse-lhe com ternura e sincero arrependimento:
– Mãe, tu não és filha da puta. Eu é que sou.
Fiéis à tradição e ao apelo ao consumo, que os mais sofisticados meios de propaganda se esforçam por desenvolver, o casal levava já os subsídios de Natal a caminho da exaustão e ainda faltava contemplar com inutilidades e lembranças alguns parentes e amigos devotados.
Regressavam duma pequena incursão por lojas pejadas de pessoas afadigadas em nada deixarem para outras comprarem. Traziam numerosos sacos, dois filhos, outros tantos guarda-chuvas e a preocupação de terem de voltar a percorrer os mesmos sítios, a observar as mesmas inutilidades, a hesitar de novo, para voltarem sempre à livraria habitual em busca dos livros que receavam terem sido já comprados por amigos que elegeram para destinatários.
A mesa da cozinha desaparecera literalmente sob embrulhos coloridos, um molho de chaves, dois sacos de roupa vindos da creche, uma carteira de melhor qualidade que aspecto, guloseimas diversas e vitualhas.
O miúdo dava corda ao carrinho e usava as cordas vocais para conferir mais rotações ao motor imaginado. Ouviam-se os dois, carro e miúdo, no corredor, numa corrida desenfreada e interminável, sem concorrentes nem meta.
A miúda tinha ficado a dar fé do inventário e a seguir todos os gestos, interessada, a percorrer com o olhar todos os objectos, a ouvir com atenção os desabafos e as conversas dos progenitores.
Por entre a chuva miudinha que continuava a fustigar os vidros da janela adivinhava-se a noite cuja escuridão crescia por entre as luzes da cidade. E o jantar ainda por começar e um último balanço por fazer!
Nisto, a miúda interrompeu a conversa dos pais para dizer:
- Mãe, dá-me um chocolate.
- Agora, não.
- Filha da puta, disse resignada a criança perante a estupefacção e o riso reprimido dos pais. Estes, fingindo não ter ouvido, olhavam cúmplices um para o outro e procuravam o pretexto para retomarem a conversa interrompida e cujo fio de todo se perdera por causa da inopinada expressão tão bem pronunciada num desabafo convicto e convincente. Olharam de soslaio a criança que continuava atenta aos gestos dos pais.
A mãe tinha já arrumado o grosso das encomendas, começara a pôr o jantar ao lume e ameaçara com o banho, para daí a pouco, as crianças. A ordem regressara ao apartamento e a paz aguardava que a chama do gás, os temperos e o tempo propiciassem a refeição.
O pai já mergulhara na leitura do jornal. Enquanto a mãe se desdobrava nas numerosas tarefas domésticas e o irmão continuava a acelerar o motor do carrinho de corda, a menina veio de mansinho por detrás da mãe, puxou-lhe suavemente a saia e disse-lhe com ternura e sincero arrependimento:
– Mãe, tu não és filha da puta. Eu é que sou.
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